terça-feira, 24 de julho de 2012

A paixão é mais poética do que a poesia


Tem frases que lemos em algum livro ou em outro lugar qualquer que nos deixam a pensar por algumas horas, mas logo as esquecemos, outras tantas por alguns dias e depois pouco nos lembramos delas, por assim dizer, poucas estão sujeitas a ficar pela vida toda. Pois bem, já há alguns dias que estou a pensar sobre algo que Gilbert K. Chesterton escreveu: “Apaixonar-se por alguém é mais poético do que se apaixonar pela poesia” (em Ortodoxia). Esse aforismo me desafiou a refletir por que poderia ser assim, e acredito que desafiaria a qualquer um que sempre flerta apaixonadamente com a poesia.

Se pensarmos a partir do princípio democrático de que “as coisas comuns a todos os homens são mais importantes que as coisas peculiares a qualquer homem”, o grande escritor inglês, por certo, respondeu o meu questionamento, mas não me satisfez. A isso ele mesmo complementa de que “as coisas ordinárias são mais valiosas que as extraordinárias; ou melhor, são mais extraordinárias”. Por ser assim, esse ponto de vista assumido por ele que é poético. E tal ponto de vista é possível a todos os homens, tal qual o ato de se apaixonar por alguém, portanto numa perspectiva democrática de pensar, o poeta não é melhor do que qualquer homem comum, digo, sua atitude poética não é mais poética do que a do apaixonado, pois a paixão é uma forma mais nobre de poeticidade do que as palavras poéticas. Isso porque enquanto nós, os poetas, estamos nos apaixonando por palavras e rimas tem gente por aí, em condição melhor e sem habilidade com as palavras, se apaixonando por pessoas de carne e osso.

O que quero verificar é como, de fato, essa paixão por alguém é mais poética do que pela poesia. E ao pensar nisso percebo que a paixão se apresenta como uma poesia mais complexa e sublime que a própria poesia, porquanto há semelhanças entre elas. Aqui me livro de todo o falatório a respeito dos danos da paixão piegas, falo de paixão como amor romântico, Eros.

A vocação maior da poesia é o despertar da admiração. O poeta e o filósofo se voltam para aquilo que suscita admiração, assim pensam Tomás de Aquino e Aristóteles. Dessa maneira, o poetar/filosofar firma-se no compromisso com o cotidiano, com as coisas simples do dia a dia. E ver no comum e no diário o que é incomum e não-diário, ver o maravilhoso nisso, é o princípio da poesia.  É assim que o poeta encontra o maravilhoso, a admiração, na folha que cai todos os dias, no objeto abandonado, na flor, na pedra no meio do caminho, por essa sensibilidade, faz sua bela poesia de coisas simples, cotidianas etc., de igual modo, o homem/mulher comum vê o maravilhoso em um simples alguém e se apaixona, portanto faz dele sua poesia. Não é que a pessoa objeto da paixão seja tão diferente das outras, ou incomum, mas assim como o é para o poetar, o apaixonar-se é uma questão de sensibilidade, é um “saber” ver com olhos de admiração, pois o sentido e a beleza se encerram na mesma realidade de cada dia.

A paixão tira a pessoa amada do lugar comum, do seu sentido corriqueiro e dá um sentido de singularidade a ela, a faz sentir-se especial, única. Essa pessoa não aparece ao que ama como ela é naturalmente, a admiração causa uma mudança na percepção da realidade de quem se maravilha e também de quem se deixa envolver-se. Se o poema é o lugar da singularidade poética da palavra, a paixão é o lugar da singularidade poética da “pessoa” amada. A pessoa amada torna-se uma poesia, pois tudo afetado por essa força, ao que suas atitudes, sejam boas ou ruins, tornam-se como palavras que saem de seu sentido mais “literal”, comum, e passam para o nível metafórico, e são vistas a partir de um outro ponto de vista, o ponto de vista da paixão. Essa pessoa é trazida do lugar comum para o lugar mágico, assim como as palavras são pegas do uso ordinário para o poema, fazendo surgir o extraordinário, e é ali, de fato, que elas ganham novos sentidos, pois mudam de lugar. Por isso que é mais poético apreciar alguém como uma poesia viva do que enchê-la de poemas de amor.

Assim em torno desse amor Eros, há semelhanças essenciais entre a poesia, o amor/paixão e o homem. Isso porque nesses há uma estrutura dúplice que compreende um elemento positivo e outro negativo, o que se denomina de estrutura da esperança, ao que se diz que a forma mais íntima do poetar é idêntica à forma interna da admiração. Por sua vez, a admiração comporta aspectos negativo e positivo. O negativo diz respeito ao sujeito que admira não ter conhecimentos muito claros, não compreende, não conhece perfeitamente o que está por trás do que admira, no dizer de Tomás de Aquino: “a causa daquilo que admiramos nos é desconhecida”, por isso talvez se apaixone. Assim se manifesta, entre o “sim” e “não” a estrutura idêntica da esperança na paixão, ao que esta nasce, também, sempre da possibilidade, mesmo que distante e imprópria. Em relação à esperança ela está situada entre o “não ter em absoluto” o que se deseja e o “já possuir”, por ser assim, a paixão, a esperança e a saudade se misturam, tornando-se um acúmulo de presença e ausência envoltas na áurea do mistério que nos fascina de algum modo. Assim diz o poeta João Campos Nunes: “Pesado é o talvez, inexata distância. Quem um dia diferenciará, das saudades, as esperanças?”

Os poetas não têm do que se vangloriar em relação a um apaixonado, porque o ato de apaixonar tem a mesma estrutura e essência da poesia, pois a paixão em si é poética, por ser assim, ela é uma forma mais nobre de poesia. E se o apaixonado não for poeta ou compositor das palavras, há quem cante: Não faz mal/ Não ser compositor [poeta]/ Se o amor valeu/ Eu empresto um verso meu/ Pra você dizer(Cleberson Horsth e Ronaldo Bastor, Roupa Nova). Quanto a mim, prefiro deixar-me ser feito poesia do que ser poeta, pois apaixonar-se é para os fortes, para os sensíveis, para os humanos; já fazer poesia é para os fracos, para os que se deixam levar pelo pecado da luxuria de querer ver a realidade sempre mais sensual e atraente, mesmo quando feia e desforme. E se for para ser poeta, é melhor sê-lo inspirado por paixões, e não é assim?

2012 © Lucas Nascimento

Texto publicado originalmente em www.lucasnascimento.jimdo.com em 2012

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