Queria que este texto fosse lido
ao som de uma boa trilha sonora, tal como as que estou ouvindo agora, que pode
ser um pop, um jazz, um MPB, um blues ou algo semelhante de bom gosto. Queria
que a leitura fosse acompanhada ao sabor de um bom mousse de maracujá, após uma
saborosa refeição daquelas de final de ano, preparada de um jeitinho especial.
O local de leitura poderia ser a sala de sua casa e você lançado ao tapete,
recostado em algum lugar confortável, e que o dia estivesse com clima ameno,
para não dar fadiga. Isso porque a serenidade e o ócio são um bom lugar e
momento para se pensar sobre coisas importantes da vida, ou melhor, repensar a
vida. Ainda mais se o ano estiver se findando ou começando, que é o caso.
Mas se lhe falta algumas dessas
coisas, peço que não falte coragem, porque é preciso ter coragem para visitar
os porões da alma e rever o que passou; olhar as fotografias de conquistas e as
caricaturas de derrotas, o lixo e a bagunça que restou. É necessário,
sobretudo, ter coragem para se desvencilhar e não repetir as promessas vazias,
com tons de autoajuda, feitas ano a ano a si mesmo, aos outros e a Deus na
ocasião do novo ano que chega. Na verdade, para se pensar a felicidade é
preciso ter sangue no olho, portanto, é imprescindível ter muita coragem e
desprendimento de si mesmo.
Isso porque viver é caminhar.
Caminhar, sobretudo, para dentro de si mesmo e essa é a maior de todas as
caminhadas, ou como disse alguém: “a grande caminhada”. E o ato de caminhar
requer desprendimento, renúncia, coragem para o inusitado. Então, quem caminha
para dentro não pode se prender a nada que está na rodagem, não pode deixar
deter-se por aquilo que prende os passos e amarra a alma no passado ou à beira
do caminho, caso contrário se estará caminhando apenas para fora. E, por tantas
razões estamos presos às miragens do futuro e às coisas dispersas em nosso
passado que nos fazem, no presente, lutar por elas, contudo que não nos deixam
livres para caminhar para dentro, apenas para fora, quiçá, para trás.
Caminhamos para fora quando nos deixamos possuir pelas coisas em si, quando nos
deixamos depender de tais para dar valor à nossa vida, ou seja, quando
pretendemos possuí-las para sermos alguma coisa, para sermos aceitos, quando
apenas sonhamos em ser bem sucedidos, “melhorar de vida”, ou coisa do gênero.
A caminhada para fora é
representada pelas conquistas que se pretende possuir e pelas possuídas.
Entretanto, o grande problema não é conquistar, mas possuir o que se conquista,
porque quando possuímos o que conquistamos é porque já fossos possuídos por tal
coisa. E isso nos prende. No entanto, vale ressaltar que, coisas não são apenas
objeto-objeto, mas os nossos relacionamentos coisificados também o são, por
assim dizer, estamos cada vez mais coisificando as pessoas, tornando-as objetos
da realização egoística de nossos prazeres social, sexual, financeira e
afetivo. Isso significa dizer que estamos no grande mercado desumano em que as
pessoas são coisas, cada coisa com sua embalagem customizada e sendo cada qual
convidada à possessão da outra que lhe agrada. É o que chamam de liberdade
pós-moderna.
Pessoas que caminham por desejos
egoístas podem chegar a possuir tudo, mesmo sem nada ter. Isso porque suas
vidas estão ligadas ao que não tem, ou ao que tem, e dependem disso para serem
“felizes”. Digo, são pessoas que vivem em busca da felicidade como se fossem
alcança-la a cada realização, a cada conquista. Só que “felicidade não é o
lugar onde se chega. É a forma como se vai”. Não é à toa que a palavra
felicidade no hebraico tem a ver com “caminhada”, “percurso”.
Por ser assim, estou lhe
convidando a caminhar, caminhar para dentro. Isso significa “ter tudo, sem nada
possuir”, pra ser menos filosófico, é sonhar, é ter planos, é querer crescer na
vida, é vislumbrar um emprego melhor, uma dieta, o casamento etc. Sem, no
entanto, amarrar sua felicidade a isso, porque essas coisas estão todas à
margem do caminho, e se conquistadas, são pra ser apreciadas, desfrutadas,
vivenciadas como o peregrino que passa a cada vila, contribui e desfruta do
melhor dela, mas sabe que ali não pode ficar e que o melhor que pode levar dali
vai dentro de si.
Pessoas assim se não conseguirem
o que desejam, pelo menos, não as possuiu, por isso é ser livre ou menos preso.
Com isso, se perder ou se ganhar, se errar ou se acertar, o importante é que se
está caminhando. A pessoa está vivendo com o coração sempre no caminho, no
verdadeiro, na vida, no que é eterno, isso porque “onde está o seu tesouro ali
está o seu coração”. Por assim dizer, a eternidade é uma caminhada, sempre
coletiva, para dentro da profundidade do que nos faz humanos. O que ressoa com
um gesto de interpretação do que o mestre palestino disse há mais de dois mil
anos: “não adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e se perder de si mesmo”.
Caminhar é lidar com a dor e o
prazer de aprender dia a dia a renunciar, renunciar os desejos, as ambições, as
paixões que grudam à nossa alma. Então, que vivamos a renúncia de tudo que
tenta nos possuir. Que aprendamos a romper com o passado, com a culpa que nos
possui por não ter conquistado ou perdido alguma coisa que possuíamos. Que
aprendamos a lidar com o futuro e a desejar o que nos faz, de fato, pessoas
melhores, pessoas mais livres de nós mesmos e das coisas, para melhor
desfrutarmos de tudo o que o caminho tem a nos proporcionar. Sendo assim, não
nos esqueçamos de que se somos alguma coisa, então, somos peregrinos do eterno
no caminho da existência, à luz e à sombra da eternidade. Eis a felicidade,
caminhe! Eis a proposta para um ano eterno, (...).
2012 © Lucas
Nascimento
Texto publicado originalmente em www.lucasnascimento.jimdo.com
em 2011
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